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Reflexões após uma tragédia: O que as experiências de pico têm a nos dizer


A última semana trouxe eventos extremos para o Estado de Santa Catarina. Primeiro, vivemos a dor de um luto coletivo. Como não se sensibilizar com perdas que mesmo distantes representavam uma espécie de apogeu da própria vida. Uma equipe de futebol em ascensão, um elenco de talentos e potencialidades que se apagam no ápice de seu resplendor.

Invariavelmente, a reflexão que estas perdas nos remetem é em relação ao nosso próprio sucesso. É como se um evento como este nos fizesse parar nossa vida por pelo menos cinco minutos, e pensássemos: “Estamos realmente indo pelo caminho certo?” Esta dúvida que assola muitos pensamentos em questão de segundos invade nosso corpo através de uma angústia arrebatadora, e preenche os espaços vazios de incompletude, figurando imagens que questionam o nosso conceito de auto realização.

A Psicologia Integral chama de Experiências de Pico os eventos extremos que colocam em evidência os limites entre a vida e a morte, em uma escala macroscópica. Estes eventos, através de sua capacidade de sensibilização extrema, são capazes de gerar um sentimento de empatia e compaixão em um nível tão profundo que transpassa as barreiras culturais, sociais, econômicas, raciais, sexuais, etc.

Afinal, como não se sensibilizar com a perda de um filho pela morte do seu pai herói a caminho de um campo de batalhas em terras estrangeiras. Ou de uma mãe que diante das triviais perguntas sensacionalistas, no auge de sua dor e simplicidade oferece consolo e um abraço ao repórter interlocutor que igualmente fragilizado desmorona.

Enfim, imagens como estas causam uma sensibilização e geram manifestações a um nível global. Vemos jogadores europeus de times tradicionalmente rivais abraçados, e grandes torcidas de São Paulo em um ato pacífico. Fica evidente o sentimento de empatia pelo “outro”, pelo “diferente”, ou porque não dizer pelo “humano”, que este estado de comoção provoca.

É como se um sentimento de paz viesse junto com toda dor. Neste momento precisamos do abraço deste estranho para consolar a dor da perda daquilo que não tivemos a oportunidade de conhecer. Talvez porque fosse demasiando estranho, eu precisasse me defender, porque no fundo este estranho sempre me completou, embora eu não soubesse... 

Mas a questão que fica é, e depois que a dor passa, e eu não precise mais deste estranho para consolar a minha dor. Ainda o tratarei com a mesma compaixão? Ou a velha hostilidade perante as diferenças voltarão a reinar? Segundo a teoria integral, a evolução da consciência se dá basicamente através de três níveis: parte de um estágio Egocêntrico, passando por um estágio Etnocêntrico, atingindo no caso de sua maturidade o estágio Globocêntrico.

Da mesma forma que evoluímos através destes estágios ou níveis, estas passagens se dão através dos estados de consciência, como por exemplo, o estado de comoção gerado por esta tragédia. O que significa para esta linha de pensamento é que os “estados de consciência são passageiros, mas os estágios são permanentes.” De forma que no nosso cotidiano, alguns estímulos conseguem ultrapassar as barreiras das defesas sensoriais, que literalmente nos anestesiam perante a dor do outro.

As experiências de pico são um exemplo de eventos que provocam um estímulo macro sensível a nível de massas e provoca uma possibilidade de reflexão coletiva sobre o sentido da vida. Esta reflexão toma proporções realmente macroscópicas quanto mais elaboramos o simbolismo que envolve este evento em si.

A começar pelo fato simbólico da perda de uma equipe esportiva de futebol, que por si só representa o espírito coletivo. A luta pela união, os esforços para nos mantermos em um grupo, a necessidade de pertencimento através de uma identidade que nos liga a algo maior que nos transcenda, seja como jogadores, torcedores, jornalistas, ou meros espectadores.

Segundo o psicólogo Jean Piaget, a evolução da consciência se dá em um aspecto individual, a partir dos primeiros estágios da infância, sendo que aos seis anos a criança é capaz de fisiologicamente abandonar uma posição e uma perspectiva egocêntrica. Ela deixa de acreditar que seu ego é o centro do universo, enquanto assume uma capacidade de empatia, ela é capaz de perceber e considerar o interesse e a necessidade dos outros, o que é um grande passo no sentido de seu desenvolvimento social.

De acordo com a sua formação e história de vida, esta criança poderá dar maior ou menor valor aos interesses e necessidades dos outros, em relação às suas próprias decisões em todos os sentidos. O que virá a formar a sua inteligência ética. Segundo o filósofo Ken Wilber, a nossa consciência evolui fundamentalmente por meio de várias linhas de desenvolvimento que crescem no sentido de diversas direções, porém sempre se ampliando e expandindo para um nível maior de complexidade.

Assim, no inicio da infância quando saímos do estágio egocêntrico de maturidade, a nossa consciência se abre para considerar os interesses e necessidades daqueles que nos são mais próximos, como a família e o círculo social imediato. A partir de então passaríamos a desenvolver o nível de consciência etnocêntrico, que significa que somos capazes de considerar as necessidades daqueles que têm o mesmo ponto de vista cultural que o nosso. A palavra Ethos remete aos traços culturais de um povo, assim, o etnocentrismo representa a crença de que o nosso ponto de vista cultural é o centro do universo.

O estágio seguinte de maturidade da consciência, segundo a abordagem integral, seria o globocêntrico, que assumiria uma empatia pelo outro a nível de humanidade, além de qualquer diferença cultural. Este ponto de vista se apropria de algumas capacidades de assumir perspectivas acima dos preconceitos e verdades absolutas. Resumidamente, é capaz de relativizar seu ponto de vista, buscando se aproximar ao máximo da experiência do outro.

Assim, simbolicamente a perda de algo que representa o espírito coletivo, coloca em evidência nosso sentido de união. A função do social, qual o papel do outro na minha vida, sobretudo quanto à minha realização e sucesso pessoal? Nestes momentos nos damos conta de que o nosso sucesso é algo que simplesmente não faz sentido, quando visto isoladamente ou fora de um contexto social. De forma que qualquer realização pessoal só ganha sentido quando ela literalmente realiza algo que nos transcenda, caso contrário será apenas uma conquista que se esvazia ao longo do tempo.

A questão que se coloca é por que as experiências de pico que nos sensibilizam ao ponto de nos lembrarem que somos humanos, uma vez que passa o estado de comoção, não são suficientes para nos levarem a estágios de consciência mais elevados, no sentido de gerar uma identificação e engajamento com causas humanitárias mais profundas? Porque quando somos colocados em contato com a nossa humanidade, não conseguimos utilizar este potencial adormecido para realmente transformar nossa realidade imediata e seu contexto social?

A resposta fornecida pela abordagem integral é que cada experiência é interpretada pela consciência a partir do estágio de maturação que ela se encontra. Assim, os estados emocionais serão gerados com base nesta interpretação de realidade e todo o sentido, e o aprendizado que se tirará destas experiências depende do nível de maturidade que cada consciência se encontra. Estamos falando até aqui do desenvolvimento da consciência em um aspecto individual. Porém, se elevarmos nosso foco de observação para o desenvolvimento do nível de consciência da própria espécie humana, chama à atenção as coincidências deste evento.

Outro fator a pensar é o papel e atuação da mídia neste evento específico. Uma vez que enquanto atores sociais responsáveis pela formação de opinião, a grande mídia possuí um grande poder através da capacidade de sensibilizar as pessoas em relação a estes episódios. Assim como aos grandes temas que envolvem as agendas sociais, culturais, políticas e econômicas. Sendo que quando a própria mídia se vê assolada nesta tragédia, também se força a assumir um novo posicionamento perante a dor do outro, e temos a oportunidade de assistir a uma mídia mais humanizada, enquanto expõe ao vivo suas próprias fragilidades humanas.

De acordo com a teoria integral os estados de consciência são passageiros, porém, os estágios são permanentes. A passagem e evolução através dos estágios, se dá basicamente através das experiências de pico que se propagam na consciência, gerando um movimento de expansão através dos estados emocionais feito ondas. Ou seja, os estados vêm e vão, as emoções surgem e desaparecem. A cada experiência de pico a consciência se expande ainda mais além do seu estado original. Conforme o estado emocional passa, integramos e elaboramos toda a experiência emotiva através de um movimento de inclusão daquilo pelo qual a experiência em si nos sensibilizou.

Este é o significado do termo “incluir para transcender”. Significa que toda experiência de pico tem dois movimentos básicos e naturais. O primeiro de expansão ou sensibilização da consciência. O segundo de inclusão ou elaboração da própria experiência em si. O que garantirá que determinada experiência de pico tenha sucesso no seu propósito de evolução da consciência, através do crescimento pelos estágios e níveis mais elevados e superiores, será a capacidade de elaborar e dar significado à experiência para que ela não seja apenas um estado emocional passageiro, ou solto no tempo e no espaço.

Sabemos que a capacidade de simbolizar e expressar suas experiências emocionais através dos símbolos é um ato intrinsecamente humano. Sendo que estes símbolos contextualizam estas consciências dentro dos aspectos históricos, sociais e culturais que determinam a capacidade de reflexão, elaboração e construção de um significado mais profundo em relação a determinado evento histórico.

Contudo, por mais sofisticada em termos tecnológicos que a civilização contemporânea esteja em termos de recursos de comunicação e propagação de informação e estímulos. Nos encontramos extremamente carentes de recursos reflexivos e simbólicos que ocupem os espaços hegemônicos.

O que ocorre neste contexto é que temos muitos estímulos sensoriais que favorecem uma grande expansão de sensações. Porém, poucos estímulos que favoreçam a reflexão e a elaboração desta sensibilização, muitas vezes realizada de uma maneira sensacionalista que não auxilia na construção de significados mais profundos em relação a temas que são sensíveis para toda à humanidade.

Coincidentemente, cinco dias após a tragédia com a equipe da Chapecoense e demais profissionais da mídia. Exatamente no dia da chegada dos corpos ao Estado, a capital Florianópolis foi atingida por um forte ciclone subtropical que felizmente não provocou nenhuma morte humana, mas deixou um rastro de destruição e muitas árvores derrubadas.

Tentando compreender o significado de tais eventos catastróficos, recorremos ao velho Jung que nos lembra que “à medida que aumenta o conhecimento científico diminui o grau de humanização do nosso mundo. O homem sente-se isolado no cosmos, porque já não estando envolvido com a natureza, perdeu sua “natureza emocional inconsciente”, com os fenômenos naturais, por sua vez, perderam aos poucos suas implicações simbólicas.”

“O Trovão já não é a voz de um Deus irado, nem o raio seu projétil vingador. Nenhum Rio abriga mais um espírito, nenhuma Arvore é o princípio da vida do homem. Serpente alguma encarna a sabedoria, e nenhuma Caverna é habitada por demônios.”

“Pedras, plantas e animais já não têm vozes para falar ao homem, e o homem não se dirige mais a eles na presunção de que possam entendê-lo. Acabou-se seu contato com a natureza, e com ele se foi também a profunda energia emocional que esta conexão simbólica alimentava.” Finalizamos, lembrando que para Jung não existe coincidências, mas sim sincronicidades. Nos desafiamos a refletir sobre a sincronicidade destes eventos em termos espaciais e temporais.

Como foi dito, no dia da chagada dos jogadores da Chapecoense ao Estado, uma tragédia causada pela irresponsabilidade ou porque não dizer pela ganância humana. Fomos assolados por uma catástrofe natural que nos obriga a cuidar uns dos outros, e todos da natureza. Esta sincronicidade ganha ares simbólicos a partir da fala de Jung, quando nos damos conta de que tudo ocorreu no dia 04/12, pelo calendário cristão reconhecido como o dia de Santa Bárbara, também conhecida como Iansã pelas religiões de matrizes africanas. Esta é a divindade que simboliza os raios, ventos e tempestades.

Assim, podemos imaginar algumas interpretações para estes eventos extremos sincrônicos. Como foi dito, cada consciência interpretará estas experiências e a suposta ligação entre elas a partir do estágio em que se encontra. Alguns poderiam dizer que os Deuses estão furiosos, outros podem ver esta associação com bons olhos. Ouvi de uma velha senhora nativa da região, que "a tempestade veio para limpar a tristeza do Oeste." 

O importante desta reflexão é não deixarmos de olhar para as experiências extremas de pico emocional, com uma capacidade simbólica de construção de significados, ampliando as possibilidades de maturação da consciência. A capacidade de associação entre experiências emocionais profundas cria laços que amarram os sentidos e significados, e nos ajudam a contar a nossa própria história. O fio condutor da vida fica cada mais forte, e por ele continua trafegando toda a energia vital que nos conduzirá para os patamares mais elevados da nossa própria existência.

Prestamos nossa homenagem aos jogadores da Chapecoense e demais jornalistas. Assim como aos familiares e todos aqueles que estão emocionalmente envolvidos com esta tragédia. Procuramos honrar a onda emocional que foi gerada neste triste evento. Nossa responsabilidade é garantir que a grande massa de energia psíquica criada através destas experiências de pico emocionais extremas e sincrônicas, sejam forças propulsoras que alavanquem o desenvolvimento da própria humanidade, para que seus sacrifícios não sejam em vão, e suas consciências não se mantenham soltas neste tempo e espaço. Por isso #FORÇACHAPE 

 

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